A história que não escrevi
Era de noite. Tinha-me deitado há umas horas, mas a cabeça fervilhava de ideias e dormir era a última coisa que me apetecia. Nem sabia quanto tempo faltava para o despertador tocar. Estava com demasiado medo para enfrentar a realidade. Então fui para a sala e preparei-me para escrever. Sempre era mais produtivo do que andar de um lado para o outro na cama.
Na mesa da sala, uma garrafa de vinho vazia. Talvez a culpada desta insónia.
Mudei-me há pouco tempo e, por isso, qualquer movimento ecoa pela casa. É como se a sala se enchesse de vozes que não existem.
Todos os dias compro umobjeto novo. A casa, aos poucos, vai ganhando vida. Hoje foi um cacto. Um pequeno cacto, ou melhor, uma suculenta, que coloquei em cima do móvel. A base é preta e a suculenta tem uma pequena flor azul. Tinha lido que o azul é a cor mais bela da natureza, devido à sua raridade, e esse facto sempre me interessou. Quando vi a suculenta com uma flor azul, soube que tinha de a comprar. Não minto quando digo que fiquei desapontado ao descobrir que era artificial, mas deixei-a ficar na mesma.
Até comprei um pequeno livro sobre como cuidar dela, que li enquanto jantava. Agora serve de base para a própria planta — o ciclo final de um livro.
Naquela sala só tinha um pequeno sofá de dois lugares, um móvel onde mora a minha suculenta, cujo azul, de tão artificial que é, brilha. Nunca tinha visto nada assim. Afinal, talvez seja mesmo especial.
E, claro, a mesa onde estou agora.
Estou sentado numa caixa. Lá dentro há uma estante por montar, que ainda não montei porque, neste momento, tem outro propósito: ser uma cadeira.
Mais tarde, será uma estante. Até já sei o que quero colocar em cima: os meus livros favoritos e uma planta, talvez daquelas que ficam pendentes. Sempre gostei de as ver, à procura do chão, a quererem fugir da prisão que o vaso lhes impôs. É uma tentativa de fuga à vista de toda a gente.
Sabia perfeitamente sobre o que queria escrever: a história de um pescador que gostava de ficar parado, a olhar para o mar, que nem colocava isco no anzol, apenas queria sentir a brisa e a calma que o mar transmite. Mas precisava de uma desculpa para o fazer todos os dias.
Mas no momento em que ia começar a escrever, o despertador tocou.
Suspirei fundo e voltei para o quarto, para me preparar para um dia que ia ser muito complicado de se passar.
A casa é pequena. Do meu quarto vê-se perfeitamente a sala. Conseguia ver o móvel e a suculenta, agora com o seu brilho mais intenso.
O azul preenchia o espaço. Ao início não liguei muito, achava que era do sono, mas passado algum tempo a luz azul já tinha chegado ao meu quarto.
A luz pulsava, como um batimento cardíaco.
Fui até lá devagar e, à medida que me aproximava da sala, o meu coração batia mais depressa. E a luz vibrava ao mesmo ritmo, como se partilhássemos o mesmo corpo.
A luz da planta era tão forte que mal a conseguia ver. Só via os seus espinhos, refletidos na parede.
Quando estendi a mão para lhe tocar, a luz tremulava cada vez mais. O ar ficou mais denso, e a luz emitia um pequeno som, que naquela sala ecoava imenso. Quanto mais próximo estava da planta, mais alto o som ficava. E, quando finalmente lhe toquei, o impacto foi imediato.
A luz ficou tão forte que fui obrigado a fechar os olhos. E, quando os abri, a luz tinha-se expandido. Tinha tomado conta de tudo. O chão desapareceu, a sala já não existia. Só a luz e o seu som, desta vez sem eco.
E, por um período de tempo, fiz parte dela.
Senti o seu pulsar, o seu frio. Estava dentro de uma luz.
Até que uma voz sussurrou ao meu ouvido:
Volta. Já estás a olhar para o mar há muito tempo.
E a luz dissolveu-se no azul do oceano, e o som que transmitia transformou-se no bater das ondas
E ali estava eu, sentado a olhar para o mar, perdido dentro da história que ainda não escrevi.